terça-feira, 22 de maio de 2012

Cloud Atlas, David Mitchell




Acho que a primeira coisa a ser dita sobre este livro é que vale a pena ler. Eu nunca havia lido nada do autor, mas agora vou fazer minha mini missão ler o resto das obras dele até o fim do ano. Cloud Atlas é um livro que cativa pela originalidade da estrutura,  pelas diferentes vozes, por uma prosa afiada e pela reflexão que propõe.

Eu fiquei indecisa sobre como fazer esta crítica porque, pelo menos como eu vejo, existem dois caminhos para se comentar um livro “inteligente”. Você pode partir para o super literário, mostrar como você é esperto e entregar a maioria dos segredos do livro que são gostosos de se descobrir sozinho, ou você pode fazer a crítica minimalista e apresentar uma sinópse do livro e dizer que todo mundo deve muito super ler esse troço.

Eu acho que a segunda linha é mais bacana para o leitor, mas todo mundo gosta de se exibir um pouco (até porque isso é um blog, um pouco de pavonice está subentendida) então vou dividir a crítica em duas partes. Se você quer ler o livro recomendo parar na primeira, e depois voltar para a ler a segunda e me disser o quanto eu sou esperta e/ou se viajei.


Primeira parte – quase sem spoilers


Cloud Atlas tem uma estrutura incomum. O livro é dividido em 6 narrativas, que são interrompidas no meio e retomadas na segunda metade do livro em ordem inversa, de forma que a história que abre o livro também é a última que terminamos. Cada uma das narrativas individuais pode ser vista como uma pequena novela.

The Pacific Journal of Adam Ewing – acompanha o diário de Adam Edwing, um jovem advogado americano cruzando o pacífico sul em 1850. Ele se depara com a colonização branca nas ilhas da região, e com os tormentos dos nativos.

Letters from Zedelghem  –  narra de forma epistolar,  o período em que o jovem compositor, sensualista e trapaceiro Robert Frobisher passa na Bélgica em 1931. Ele convence um musico genial a contratar-lo como ajudante, após fugir de seus muitos credores na Inglaterra.


Half-Lives: The First Luisa Rey Mystery –  Único conto que não é narrado em primeira pessoa.  Passado na Cafórnia da década de 70 e conduzido em clássico estilo noir,  mostra as aventuras de Luisa Rey, intrépida reporter que descobre que a nova usina nuclear local não é tão segura quanto parece. 


The Ghastly Ordeal of Timothy Cavendish –  A cômica história de Cavendish, um editor quase fracasado na Londres atual que por acaso acaba com um bestseller nas mãos. Chantageado e ameaçado pelos irmãos brucutus do autor, Cavandish foge para Hull, onde acaba aprisionado numa casa de repouso infernal.


An Orison of Somni~451 –  A narração do interrogatório de Somni~451, uma escrava industrial (fabricant) num futuro distópico que se desenvolve intelectualmente além de sua programação genética. Com o despertar de sua consciência critica Somni se depara com um pesadelo Orwelliano controlado pro grandes corporações e impulsionado pela manipulão genética.


Sloosha’s Crossin’ an’ Ev’rythin’ After –  Uma história dentro de uma história (frame narrative, não sei o termo em português). Passada em um futuro pós-apocaliptico no Havaí, onde a vida regrediu para padrões tribais. Zachary, um jovem pastor, perde seu pai e irmão para uma tribo rival. Algum tempo depois o restante de sua família aceita hospedar Meronym – uma visitante de uma tribo distante, com mais desenvolvimento tecnológico. 


As histórias são todas conectadas. Frobisher acha o diário de Adam, as cartas dos compositor são achadas por Luiza Rey, e assim por diante. Outras ligações e referencias vão aparecendo ao longo do livro, formando um padrão quase visual, ou musical.


Muitos temas permeiam as histórias, mas o que salta mais aos olhos é a predação, em escala individual e global. Este não é um livro fácil de começar, o primeiro conto não é dinâmico, e as interrupções constantes são cansativas. Mas uma vez que se entra no rítmo do livro é impossível parar. Esta é uma leitura recompensadora: não tão difícil e que vai fazer você se sentir bem mais sabido quando acabar.


Segunda parte –  alguns spoliers


Existe uma forte insinuação de que os protagonistas são reencarnações da mesma alma.  Todos eles têm a mesma marca de nascimento em forma de cometa em um dos ombros, referencias ao budismo aparecem aqui e ali (como a estatua de Buda que Somni˜451vê quando está em fuga), e os personagens parecem dividir memórias entre eles.


Somni tem um deja-vu ao sofrer uma queda de ter sofrido uma queda ( Luiza é jogada de uma ponte), Luiza tem certeza de já ter ouvido o Sexteto Cloud Atlas, escrito por Frosbisher,  Sixmith é o destinatário das cartas de Frobisher e é quem desperta o interesse de Luiza na corporação Hydra.


Pensando em reencarnação, pode-se tentar avaliar qual é a qualidade que cada personagem traz para o processo de iluminação.


Para mim os mais difíceis de analisar são Adam e Cavendish. Adam me parece uma pessoa observadora e sensível, mas talvez sua grande falha seja a passividade. Ele observa mas não faz. E começamos a acompanhar a história deste ponto, então talvez ele ainda não tenha muito o que acrescentar. (fora que Adam, Adão, primeiro homem, etc etc)


Frobisher é um dos meus personagens preferidos do livro. Ele é um sensualista, e acredito que a capacidade de enxergar e produzir beleza e êxtase é uma parte da evolução. A sensibilidade para o belo.


Luisa Rey, ela faz o que Adam não faz – com tudo contra, ela se dedica a expor uma corporação ganansiosa, homicida e desprovida de ética. Perseverança e determinação.


Cavendish: para mim é aqui que a porca torce o rabo. Eu gosto dele, acho que talvez seja o personagem mais divertido da livro. Mas não consigo decidir o que ele acrescenta em termos de evolução. O melhor que consegui pensar é que ele é uma espécie de saco de pancada metafísico, meio como se ao longo de todas as encarnações esta foi a que ficou no cantinho do castigo.


Sonmi, adoro este capítulo, adoro a narrativa em forma de interrogatório, e adoro distopias. Para mim Sonmi encarna a evolução intelectual e o auto sacrifício a partir de uma análise racional.


E por fim o último conto. Apesar de Zachry ser o narrador não é quem carrega a marca do cometa, e sim  Meronym. Acredito que com ela fechamos o ciclo. Meronym aprende compaixação e aceitação. Aceitação por todas as culturas que visita, e o seu gesto ativo de compaixão por Zachry liberta o ciclo de reencarnações. 


Quando Meronym salva Zachry, abandonado os princípios de não intervenção de seu povo, ela redime o ciclo que começou com Adam. Ela age ao invés de ser um observador passivo. Veja que Adam também passa por uma situação semelhante ao descobrir Autua na sua cabine. Mas apesar de empatizar com o desespero em que o coitado se encontra, Adam não consegue deixar de pensar em sua própria segurança primeiro, ele ajuda Autua porque é a melhor maneira de salvar a própria pele, e no final acaba tendo sua vida salva por ele. 


Agora, se reencarnação é o fio condutor da história, predação ainda é seu tópico principal. Ela aparece entre indivíduos, como Adam sendo envenenado por Henry Goose, e entre sociedades: a extinção dos Moriori pelos Maoris, a exploração e prisão dos idosos em Aurora House, a criação e destruição dos fabricants, e por último o ataque à comunidade de Zachry. 


O impulso de predar aparece como um dos mais fortes na natureza humana ao longo do livro. Acho especialmente interessante que o desastre veridico que aconteceu com os Moriori se repita com Valley Men, e que ambas as sociedades dizimadas considerem assassinato um ato irredimível, que traz consequências além da vida presente.


Ficamos com um balanço entre estas possíveis sociedades utopicas, e a tendência humana para a aquisição de poder e controle. Na sexta parte do livro, Meronym tenta explicar esta parte da condição humana a Zachry, dizendo que a diferença entre civilização e barbárie é a capacidade de se controlar estes impulsos. E que, na realidade, quem não tem auto controle é o escravo de seus próprios instintos.


O que nos leva ao último grande tema do livro: civilização x barbárie, e o que constitui ser civilizado e até ser humano. Os europeus no pacífico sul se vêem como os donos do progresso, e da civilização. O povo de Zachry é fascinado por tecnologia, e associam isto com civilização e inteligência. Mas Cloud Atlas deixa claro que tecnologia e civilização não andam de mãos dadas.


O que seria civilização então, de acordo com o livro? Eu diria que essencialmente é compaixação e a capacidade de aceitar outras pessoas, outras culturas e até outras aparências físicas. Talvez essencialmente seja aceitar que não somos superiores a ninguém, e que não temos direito à predação, mesmo sendo esse um instinto básico. 


Mais algumas coisas bacanas que notei:


Existe um tema de subida e descida física: A cabine de Adam no subsolo, Frobisher subindo a torre da igreja e pulando de janelas de hoteis, Luiza caindo da ponte, o restaurante subterraneo de Sonmi e Zachry e Meronym subindo e descendo a montanha. Para mim isso é uma conecção musical, pensando no sexteto de Frobisher que também se chama cloud atlas.


Referências à Hidra, monstro com nove cabeças da mitologia grega.  A coorporação do mal na história de Luiza Rey se chama Hydra. Também é nome de uma das Nurseries da Coréia futura. A palavra aparece aqui e ali em outras história: Somni diz, “a 50 headed hydra of questions....”, Cavandish chama os irmãos criminosos de “The Hoggins Hydra”, Frobisher também se refere as irmã van de Veldes como “a hydra of names”. E Adam menciona no último paragrafo do livro, a “many-headed hydra of human nature”.


Neste parágrafo final Adam conclui (e esta talvez seja a verdadeira mensagem a ser tirada deste livro) que mesmo que os nossos esforços individuais em direção a um mundo mais justo pareçam supérfulos perante à enormidade da bárbarie humana, ainda assim temos a obrigação de tentar. Cada pequena mudança conta, cada evolução indivudual nos coloca mais próximos do momento em que o desejo de civilidade dobrará o impulso da barbárie.


Esta não é uma análise definitiva, longe disso. Muito mais pode ser tirado deste livro, e por isso mesmo esta é uma leitura que vale tanto a pena. 


Ainda sem tradução no Brasil.


Um filme baseado no livro deve ser lançado ainda em 2012.

7 comentários:

  1. Tomara que esse livro seja publicado no Brasil em bom português, depois de ver o trailer da adaptação feita pelos irmãos watchowski fiquei super curioso pra ler.

    www.tolkienmetal.com

    www.filmesespiritualistas.blogspot.com

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  2. Bem, vi o filme Cloud Atlas ontem, e ao descobrir que era baseado em um livro, logo me pus a procurar uma análise. Por sorte achei a sua, e ela só me deu a certeza de que devo lê-lo. Achei ótimos seus pontos e interpretações.

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  3. Olá! Também acabei de assistir ao filme e me senti fascinada por tanta simbologia. Gostei muito da sua análise e, ao que parece, o filme conseguiu traduzir um pouco da complexidade do livro.

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  4. Até que enfim uma crítica que valha a pena ler!
    Parabéns.

    Estou louca pra ler o livro. Só vi o filme..

    Como disse a minha amiga, se referindo ao filme: "Os críticos" de plantão estão longe de ver isso. Por isso o Tom Hanks atira um de cima do prédio"

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  5. Essa de atirar um de cima do prédio já foi uma baita sacada do autor!

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  6. Parabéns pela sua crítica! Muito bem argumentada e explicada. Você conseguiu traduzir bem a "alma" da história em poucas palavras. Vejo isso depois de assistir o filme inspirado no livro e minha teoria é bastante parecida com a sua. Agora falta apenas que eu leia o livro e tire conclusões mais profundas!

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